Quando a gente começa a conhecer o universo das APACs , dentre as várias tradições e os costumes que vamos absorvendo, um dos elementos mais fundamentais da instituição é a consciência de que existe uma certa trindade na história das APACs formada por figuras quase sagradas à frente do movimento. São elas: Dr. Mário Ottoboni, fundador da primeira APAC; Franz de Castro, mártir que doou sua vida pela causa dos condenados; e, o nosso personagem de hoje, Valdeci Ferreira. Comedido que é, talvez ele não goste de sua elevação ao panteão de heróis das APACs, mas, de fato, ele é uma figura essencial quando se fala da jornada apaqueana.

Biografia

Valdeci Antônio Ferreira nasceu em Itapecerica/MG. Formado em metalurgia pela Escola Técnica Vital Brasil, bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade de Itaúna/MG e Ciências Teológicas pela PUC/RJ. A vida profissional foi dedicada às APACs: foi presidente da APAC de Itaúna/MG, Diretor-geral da FBAC e, atualmente, é diretor do CIEMA – Centro Internacional de Estudos do Método APAC.

Valdeci Ferreira já participou de cursos, seminários e conferências em diversos estados do Brasil e em 36 países, tais como: Hong Kong, Cingapura, Espanha, Portugal, Itália, Holanda, Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Suíça, dentre outros. Também foi agraciado com medalhas concedidas por importantes instituições do Brasil. Além disso, foi vencedor de várias premiações, como: “Prêmio Empreendedor Social do Brasil” e também do “Prêmio Empreendedor Social da América Latina” em 2017, promovidos pela Folha de São Paulo em parceria com a Fundação Schwab. Também foi homenageado com o título de “Companheiro Paul Harris”, conferido pelo Rotary International; com o “Prêmio Trip Transformadores” em 2018; e no “Especial Inspiração” da Rede Globo de Televisão em 2019.

Ufa! Quanta história! Mas ainda há páginas em branco sendo escritas agora. Com o anúncio de sua saída do cargo de diretor-geral da FBAC, anunciado durante o 9º Congresso das APACs, e da sua posse como diretor do CIEMA, Valdeci começa a escrever uma nova história, e é isso que abordamos nessa conversa tão especial que tivemos com ele. Espero que aproveitem a leitura!

Para abrir nossa conversa, eu faço a pergunta: quem é Valdeci Ferreira?

Eu sou um apaixonado pela causa das APACs. Poderia dizer que eu sou um humanista e ao mesmo tempo um idealista e acredito piamente na mudança do ser humano, na recuperação do ser humano, até porque quem não acredita na recuperação do ser humano duvida do poder de Deus e essa é a razão da minha crença inabalável no ser humano, sobretudo, no nosso caso, daqueles e daquelas que são privados de liberdade, daqueles que se encontram atrás das grades de uma prisão. Eu já mantenho a quase 40 anos, diria que são quase 40 anos de uma história de vida totalmente focada. E nesta causa que abracei, foi como se tivesse passado a Cruz de Jesus Cristo.

Foram 8 anos, inicialmente em Itaúna, 3 anos dos quais trabalhando na antiga cadeia pública e, depois, já como APAC, organizei juridicamente toda a fase de construção do Centro de Integração Social. Depois desses 8 anos, quando nós já administrávamos o regime aberto sem o concurso da polícia, naquela época eu decidi fazer uma experiência fora. Fiquei dois anos em Curitiba, em um projeto missionário e nas horas livres eu continuava fazendo meu trabalho nas prisões. No caso lá, era especificamente no Presídio Central. De lá, fui para São José dos Campos e trabalhei durante 3 anos na APAC-mãe de São José. Tive a sorte de morar, inclusive, com a família do doutor Mário. Depois desses 3 anos em são José, voltei para Minas, inicialmente para Contagem. Durante 4 anos, também dentro de um projeto missionário e sempre como pastoral, eu visitava o presidio de segurança máxima Nélson Hungria. Depois de 4 anos, então eu retornei para Itaúna. Inicialmente, como presidente da APAC, fiquei 3 mandatos e, ao final, com o crescimento das APAC, acabei assumindo a direção da FBAC e fiquei então 18 anos com Diretor-geral, sobretudo com a missão de consolidar as APACs já existentes e, ao mesmo tempo, a missão de multiplicá-las, tanto no estado de Minas Gerais, quanto em outros 7 estados da Federação e, também, em outros países.

Foram 18 anos à frente da FBAC, como foi esse tempo para você, os momentos de alegrias e de dor, conquistas e derrotas?

A FBAC na verdade, foi realizada pelo nosso querido Dr. Mário e inclusive ela funcionava no mesmo prédio da APAC mãe de São José dos Campos, era um espaço que que havia lá, mas não tinha nenhuma estrutura não tinha funcionários; o trabalho da FBAC naquela época era a edição da APAC em revista que era feita bimestralmente, tanto que quando eu estive lá naqueles 3 anos eu acabei assumindo a edição da revista, eu escrevia as matérias eu arrumava doadores, eu revisava eu tirava foto eu só não fazia diagramação e a impressão, mas foi uma experiência muito interessante; e o Dr. Mário então acumulava as duas funções, tanto presidente da FBAC quanto da APAC, e foi no ano de 2004 que nós mudamos a sede da FBAC de São José dos Campos para Itaúna, uma vez que o movimento forte agora era em Minas Gerais e o doutor Mário também já entendia naquela época a importância de se fazer da sucessão, então em 2004 nós mudamos as sede da FBAC para Itaúna e eu assumi então como diretor da FBAC, a FBAC então era apenas um nome não passava de um nome, embora havia toda a constituição jurídica, estatuto e etc. Nós conseguimos uma salinha emprestada, minúsculo ao lado da APAC feminina de Itaúna e o doutor Paulo o Juiz naquela época, ele e eu liberou um recuperando do semi-aberto, para que durante o dia ele pudesse estar trabalhando na FBAC comigo, então a FBAC éramos nós dois, eu e o Sérgio, e aos poucos foi ganhando forma, trabalhamos muito nesses 18 anos, conseguimos celebrar várias acredito que a parceria mais importante foi mesmo com o tribunal de justiça que em 2004 criou o programa Novos Rumos na execução penal, depois mudou o nome para programa novos rumos, foi um divisor de águas da nossa história. Eu diria que há um capítulo antes do apoio do programa Novos Rumos e um outro capítulo depois desse apoio institucional, na esteira do apoio do programa Novos Rumos vieram outros apoios como o Governo do Estado e também da procuradoria geral, depois vieram outras parcerias importantes como com a Instituição Minas Pela Paz, com a Fundação AVSI e várias outras instituições; mas sobretudo essas 3 instituições, TJMG, Procuradoria Geral e Governo de Minas fizeram realmente a grande diferença, porque as APACs foram se multiplicando e na medida que as APACs se multiplicavam exigiu-se também um crescimento da nossa estrutura enquanto FBAC, então conseguimos celebrar uma parceria com o Governo de Minas o que nos permitiu a contratação de alguns funcionários na época, e depois essa equipe foi crescendo e foi exigindo a construção de novos espaços, então a gente conseguiu autorização da APAC feminina de Itaúna para construir na parte superior, depois esse espaço ficou pequeno, nós tivemos que alugar uma casa um pouco maior e ao final a gente viu que precisávamos construir nossa sede, onde hoje nós estamos alojados. Eu diria então, que a estrutura física, prédios, veículos,  computadores, ferramentas tecnológicas, etc. foi crescendo com a estrutura de pessoal, primeiro com a parceria com o Governo de Minas, depois do Maranhão, a Prison Fellowship e outras organizações. Nós trabalhamos  muito mesmo nesses 18 anos para dotar a FBAC de uma estrutura que permitisse um crescimento sustentável das APACs, sobretudo no sentido crescer sem perder a sua essência

Durante o anúncio de que você deixaria a direção-geral da FBAC, no 9º congresso da APACs, você falou um pouco sobre as características de cada um dos líderes que estiveram à frente da FBAC e o que você espera da nova Direção. Você poderia falar sobre isso para nossos leitores?

O Dr. Mario foi o nosso primeiro grande líder. Eu diria que ele foi um líder carismático no sentido de que ele semeou a semente da APAC por onde passou. Ele viajou por esse Brasil de ponta a ponta falando delas em igrejas, em universidades, em escolas; ele viajou por diversos países do mundo, escreveu centenas de artigos para jornais, deu muitas entrevistas, publicou mais de 25 livros. Mas eu diria que ele não tinha muita aquela preocupação gerencial. A grande missão dele realmente era levar o nome da APAC e a crença que tinha de que ninguém é irrecuperável. Por isso procurava incutir nas pessoas essa crença, de modo que quando aconteceu a mudança da sede da FBAC para Itaúna e eu assumi a direção-geral (fui o segundo líder então nessa história), não fui mais aquele tipo de líder que era o Dr. Mário, carismático, embora eu também tenha alguns aspectos carismáticos, mas eu fui mais um líder gerente, no sentido de contribuir para consolidar as APACs já existentes e criar, inclusive, bases para que elas pudessem ser sustentáveis, ou seja, celebrar parcerias; no nosso caso, de convênios com o governo estadual para o suporte financeiro das APACs, para a contratação de funcionários e para a alimentação; ao mesmo tempo com o Tribunal de Justiça, intercâmbio esse para que também o Poder Judiciário pudesse ser uma força para ajudar na sustentação das APACs. Então acho que fui um pouco esse líder-gerente que ajudou a criar uma estrutura física e uma sede, a adquirir veículos e ferramentas tecnológicas para o monitoramento da correta aplicação da metodologia do modelo de gestão das APACs, dos padrões de disciplina e de segurança. Agora, seria a hora então de uma terceira visão, digamos assim. Há uns dois anos, eu já tinha essa intuição e a pessoa que a gente entendeu que poderia dar continuidade seria a doutora Tatiana, não mais um líder só carismático, não mais um líder só gerente, mas um líder que pudesse dar continuidade desse trabalho de gerência com um toque maior de planejamento estratégico, um líder que pudesse ampliar a rede de sustentação das APACs, até porque um trabalho como nosso não se faz sozinho. Temos já uma grande rede, mas seria necessário – e é necessário – ampliar ainda mais. Então ela assume como diretora-geral da FBAC e eu assumo como diretor do Centro Internacional de Estudos do Método APAC (CIEMA), que é um braço da FBAC para cuidar de uma maneira especial da ampliação das APACs, através de intercâmbios sobretudo com os pesquisadores da metodologia e seus estudantes, do contato com a academia e também toda a parte de capacitação, formação e treinamento das equipes de trabalho, funcionários e voluntários, recuperandos e autoridades.

Como está sendo esse período de transição de Diretor-geral para novo Diretor do Centro Internacional de Estudos do Método APAC (CIEMA), já existem projetos para essa nova gestão?

Eu diria que o CIEMA começou efetivamente a 18 meses atrás, depois de nós celebrarmos parceria com uma organização filantrópica da Holanda e, nos primeiros 18 meses, o que se buscou foi criar as bases para o funcionamento do CIEMA. Nós conseguimos nesses 18 meses uma equipe que trabalhou muito no mapeamento das APACs, na construção do histórico das APACs, na questão da comunicação e da arrecadação de fundos; criamos, digamos assim, as bases e, agora, a ideia é que nesse segundo momento a gente consiga realmente fazer com que o CIEMA contribua para um aumento exponencial da metodologia, não no sentido de criar mais APACs, mas de levar o nome da APAC, a experiência APAC, para outros ambientes e outros fóruns, porque é visível, depois de quase 50 anos, que o crescimento das APACs ainda é muito tímido e uma das causas desse crescimento tímido, não obstante os bons resultados, é exatamente o fato de que o método é desconhecido. Então, nem mesmo os operadores do direito, nem mesmo as autoridades constituídas que atuam na área da segurança pública muitos são os que nunca ouviram falar de APAC, seja porque o Brasil é um país continental, muito grande, seja porque nós ainda não temos uma estrutura suficiente que nos permita levar o nome da APAC mais à frente. Uma das tarefas do CIEMA será, nesse segundo momento, de fazer com que o nome da APAC, a experiência das APACs, possa ir além das mossas fronteiras, não só no Brasil, mas também em outros países.

Caminhando para o final de nossa conversa, você gostaria de deixar uma mensagem final para os leitores e admiradores de sua jornada?

“As pessoas que vão ler essa matéria podem achar que houve uma mudança e que detrás desta mudança pode ter havido uma ruptura entre o antes e o depois. Eu diria que isso não vai acontecer, até por que essa mudança já tinha começado há dois anos e se efetivou no congresso. Mas, sobretudo, por que, nos próximos seis meses, essa transição vai acontecer de modo muito tranquilo, muito sereno, por que não se trata de fazer a transição só do diretor-geral da FBAC, mas também da diretora de parcerias. A Dra. Tatiana tinha uma série de atribuições, assim como eu; e não há de se falar de uma ruptura, há de se falar de continuidade. Nós queremos dar continuidade ao trabalho bonito que já foi feito ao longo desses 50 anos por diversas pessoas, por diversos voluntários e funcionários das APACs. Agora, quando a gente olha para trás, eu vejo um longo caminho percorrido. Eu falo por mim que nesses últimos 40 anos a gente trabalhou muito, eu trabalhei muito; eu entreguei realmente 40 anos da minha vida para esse projeto; mas, quando eu olho para frente , me dou conta de que a poucos dias se anunciou no Brasil 912 mil presos, 912 mil pessoas abandonadas atrás das grades. E quando sei que no mundo nós temos 10 milhões de pessoas vivendo também em condições sub-humanas nas prisões, seja na América Latina, na África, na Ásia e tal, a gente se dá conta de que ainda não fizemos nada ou quase nada, que tudo está por fazer e eu sempre tive essa clareza de que enquanto existir uma pessoa sofrendo atrás das grades em qualquer lugar do mundo isso é da minha responsabilidade, da nossa responsabilidade.”



Categories:

Comments are closed

9º CONGRESSO DAS APACs / 9º Congress of APACs